Na cozinha, mientras arde a lenha, no fogão,
ouço, da janela, ríspidos ruídos de metal sendo afiado.
Uma a uma, nove espadas ficam prontas. Tine o aço agudo.
Vibra o labirinto. Sinto um leve arfar de asas queimadas
e minha avó, que ‘inda alimenta o fogo, me pergunta: Tudo bem?
Lá fora o som cessa. E o silêncio brusco, obtuso,
mais me amedronta e acua que o amolador e as lâminas.
Vovó pega o bule, serve três cafés e arria, e sua, sobre o sofá velho.
Olho suas rugas, calos, seus olhos miúdos, sua dor na alma.
A primeira espada apenas começou a dar seu talho.
Somos eu e ela. A terceira xícara cabe a uma ausência.
O café jamais sorvido brilha aos matinais solares,
sob os quais esfria lentamente. Meu silencioso trago
cumpre a reverência, mas engulo o gole ansioso, arfante;
rompo o espectral assombro e ela ergue os olhos,
com tamanho esforço que me doo, amuo.
Passo a ela a xícara vazia e morna. Lê-me a borra - pouca -,
vaticina sonhos, sela-me esperanças.
A segunda espada arranca um grito mouco.
Vovó tem setenta, cãs, dores, pelancas.
Sua fala elíptica significa-me o mundo, a casa, o antigo,
o oculto, letra a letra, tal como um saber hermético, hierático,
esotérico, amplo, vívido e profundo, cujos graus avanço
com medida pressa, a qual controla em jogo; arma e atiça a chama,
cala e continua. Ontem vi-a ao fundo, calma, estava nua.
Nunca fala de vovô. Nunca se exalta. Traz na caixa arcanos de tarô,
só eles hablan. Quer adivinhar-me a sorte. Não pergunto nada.
A terceira espada é silêncio cortante.
Abuelita é gringa - Santa Cruz, Bolívia -, mística, cigana;
abre as cartas, saem-me o pendurado e o louco e a sacerdotisa e o carro
e, no centro exato dessa cruz, o diabo. Franze o cenho e os pulsos,
geme um desconforto. Olha-me tão fundo que me assusto e corro.
Quero olhar pra trás e desvelar meandros dessas vãs ruínas.
Ela aponta à frente, dá sentido ao mundo, cerra o carro e o louco.
A sacerdotisa é ela; eu, o pendurado. Caem-se-me as moedas.
Já vazios os bolsos, sinto inflar o espírito, as costelas, tudo.
A quarta espada é cruz, é guilhotina, a funda.
Batem à nossa porta. Será, já, o diabo? Ou o fantasma, a sombra,
o eco, a atroz relíquia, o vento assolador, o frio, a fome, a morte?
À menção de abri-la, ergue o dedo a velha, apenas toca os lábios,
compreendo tudo. Paro, sento, aguardo. Não batem de volta.
A quinta espada é raio e foge a trote solto.
Fale de vovô, vovó, hoje eu lhe imploro. Clamo e oro, choro,
tenho as mãos sedentas. São cuias vazias, não lhe causam pena?
Guarda esses teus dedos - me responde e aponta -; pega o lápis,
marca a angústia e o nome dele; teus antepassados recebam perdão.
Sexta espada é a pena que hesita em senões.
Ah, se eu já soubesse que doera tanto, imaginasse a causa
de tantos verões, primaveras calada, absorta, amuada,
não insistiria tanto, ao canto, sobre o fio da adaga.
No outono inteiro ela trabalha, estuda, risca seu diário,
enche folhas mortas de grafite e lágrimas. E no inverno,
queima junto à lenha as páginas sofridas, torna a ferver
água, faz café, destila. Bruxa, uma alquimista, voz da natureza.
Serve outra vez três xícaras. Não ensina. Morrerá com seus segredos
e sabedoria. Minha avó é louca e deusa, vai sem rastro ou pistas.
Sete espadas já cravadas sobre meus delírios.
Onde estão suas joias? Onde, a ametista? Fosse Deus piedoso
e ela me contaria. Tem a cura, o antídoto, ama a medicina,
mas esconde a chave, se envenena, expia. Dá adeus à vida,
faz-me olhar parado, impotente, anímico.
A oitava espada rasga sem aviso.
Abre a pele, deixa vir à superfície o carma, o vício.
Meu avô, somente a foz de seu suplício; e eu, quem sou
na história? Onde o meu arbítrio? Minha avó se vai e não
há mão que impeça. Rasga-se-me a carne, a alma, cada osso.
Dois cafés esfriam e o terceiro eu sorvo.
Nove espadas caem sobre minha cabeça.